A dialética para Hegel é o procedimento superior do
pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das
próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser
se enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a
mais abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em
que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer),
transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito
envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem
qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser
absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis
a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto
que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o
devir (síntese), aí se reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana
que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um
episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o
escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita
arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à
sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata
o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e
espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao
pé da letra, foi conservado.
a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os
prazeres da vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus
alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não
conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo
entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade
no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê
despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
b) Entretanto, essa situação
vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma
contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que
condiciona a sua. O senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência
do escravo e também porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é
uma espécie de escravo de seu escravo.
c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o
escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai encontrar
uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que só conhece
provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se
de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo,
o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza
ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o
domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão
dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o
escravo, transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu
senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade
estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o domínio e a servidão.
Hegel parte,
fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído
substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é
reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a
priori não poder, de modo nenhum, transcender a experiência, de sorte que
Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia
necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na
realidade única da experiência as características divinas do antigo Deus
transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo
imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo racionalista e
otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.
No entanto, para poder elevar a realidade da experiência
à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a
racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da
experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico,
físico e moral, não podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da
filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a
limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente
valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da
realidade da experiência devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de
Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são
condições de positividade e de bem.
Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de
uma nova lógica, para poder racionalizar o elemento potencial e negativo da
experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por
isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é
a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do ritmo
famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética dos opostos resolve e compõe
em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo elemento da
realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o
Absoluto de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o
qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo
o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente
pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidos
na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo
a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio
objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.
Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a
realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a história em geral se valoriza
na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto
é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito
abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares.
Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e sim
dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegel
considerava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas
imanentistas.
Podemos resumir assim:
1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a
si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao
passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança,
devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é
universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não
totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal
concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real,
onde tudo é essencialmente conexo com tudo;
3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a
filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o
particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia
com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia,
enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como
faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a
ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio
"logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência de
si mesmo.
Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a
autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o
desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da
história natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e
síntese, não só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda
particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria transformar-se
rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista e
imanentista.
Não é mister dizer que essa história dialética nada mais
é que a história empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos
arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do
desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal
história dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia
hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua odisséia, adquirindo consciência
de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano, como absoluto. Mas,
desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para
a qual o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser
dialético.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia - A Vida e as Idéias
dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da
Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da
Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da Filosofia
Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia - A Formação do Homem Grego,
Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
Coleção Os Pensadores. Georg Wilhelm Friedrich Hegel -
Estética: A Idéia e o Ideal - Estética: O Belo Artístico ou o Ideal, Nova
Cultural, São Paulo, 1999.
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Rosana Madjarof - 2000 - Respeite os Direitos