"Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém" Carta do Apóstolo Paulo aos Coríntios

"Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém [...]". (Carta do Apóstolo Paulo aos cristãos. Coríntios 6:12) Tudo posso, tudo quero, mas eu devo? Quero, mas não posso. Até posso, se burlar a regra; mas eu devo? Segundo o filósofo Mário Sérgio Cortella, ética é o conjunto de valores e princípios que [todos] usamos para definir as três grandes questões da vida, que são: QUERO, DEVO, POSSO. Tem coisas que eu quero, mas não posso. Tem coisas que eu posso, mas não devo. Tem coisas que eu devo, mas não quero. Cortella complementa "Quando temos paz de espírito? Temos paz de espírito quando aquilo que queremos é o que podemos e é o que devemos." (Cortella, 2009). Imagem Toscana, Itália.































segunda-feira, 10 de setembro de 2012

“SÓCRATES ERA AFINAL UM GREGO?”




Flávio L. T. S. Boaventura*

RESUMO
Quando se trata de estudar o pensamento socrático, o mais comum é recorrermos exclusivamente à obra de Platão. E, por mais ampla e controversa que ela seja, até certo ponto é compreensível que dela fabriquemos uma imagem idealizada da figura de Sócrates. Quando, porém, nos deparamos com o pensamento de um filósofo como Nietzsche, desde logo percebemos que Sócrates não pode ser considerado “filósofo”, sequer “filósofo grego”. Com efeito, o texto nietzscheano vai nos apresentar um Sócrates eminentemente lógico e teórico, portador de uma pretensa “verdade absoluta” que corromperia o espírito trágico da vida. Em linhas gerais, então, não será exagero afirmar que a obra de Nietzsche é um árduo combate ao pensamento socrático instalado no Ocidente desde Platão.
PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Sócrates. Pensamento trágico.


ABSTRACT
When concearning about studying socratic thought,we usually use only Plato´s work.
Although it is larger and more controverse, it is understandable that we produce an ideal image of Socrate´s figure judging from Plato´s work. When facing thought of a philosopher such as Nietzsche, we soon realize that Socrate can not be considered a “philosopher”, much less a “ greek philosopher”. With effect, Nietzsche’s work will present us a very logical and theorical Socrate, who has a pretention of “ absolute truth” what would damage the tragic spirit of life.So,generally, it´s not much to say that Nietzsche´s work is a hard combat to socratic though, that was established in the Ocident since Plato.
KEY-WORDS: Nietzsche. Socrate. Tragic thought.



Em sua primeira fase, Nietzsche foi um filósofo que teve como questão primordial o destino da arte e da cultura modernas. Nessa ocasião, fortemente seduzido por Schopenhauer (e sua metafísica da vontade) e pela música wagneriana, toma para si um desafio imperioso: lutar contra as tendências culturais vigentes em seu tempo, herança de

“uma confiança ingênua nas ideias de evolução e progresso lógico ou natural, no curso dos quais a humanidade teria alcançado um estágio de desenvolvimento em que estaria em condições de, humanizando a natureza e racionalizando a sociedade, aproximar-se do ideal da felicidade universal.
Nietzsche se opunha também a outra tendência de sua época, que consistia em valorizar uma forma de intelectualidade erudita, burocrática e estéril que, em nome de uma pretensa neutralidade científica, se mantinha numa posição de distância em relação aos interesses concretos de um povo, às necessidades e urgências da vida.” (1)

Nadando contra a corrente em todos os setores, vai buscar na Grécia pré-socrática o élan de que precisa, a fim de propor um ressurgimento do espírito trágico na Europa. Visa algo que destroce o cientificismo otimista de então e restaure a vida, incrementando-lhe uma coragem altiva diante das agruras da existência humana no mundo. Afinal, se Schopenhauer “tivesse razão”, onde estaria reservado o lugar das ilusões consoladoras de que a humanidade se pode valer? Este é o tema capital que o jovem Nietzsche vai empreender, resultando daí o seu apreço pelos gregos do período trágico. Exemplos de força e beleza, observou neles a capacidade de (sem precisão de alegações moralistas) transformar doença em saúde. Dizendo de outra forma, “os gregos souberam, exemplarmente, dominar o caos de seus impulsos, atingindo um domínio de si que lhes permitia transfigurar em beleza os horrores da existência” (2). Há, no entanto, que se resgatar esta valiosa lição suscitada pela tragédia grega.

Mas eis que entra em cena a figura de Sócrates... Confrontado com a tradição Ática, o ateniense, segundo Nietzsche, não passa de uma figura macambúzia - “Sócrates era afinal de contas um grego?” (3) - , ou seja, ele supervalorizava o pensamento lógico e a dialética: “O tipo de homem teórico, encarnado por Sócrates, acredita ser possível, mediante o princípio de causalidade, desvendar os segredos mais abissais da realidade - não somente conhecê-los, mas também corrigi-los. O otimismo teórico considera a ciência um remédio universal, que cura a ferida eterna do existir, e identifica no erro e na ignorância a fonte de todo mal.” (4)

Quer dizer: diante do “iluminismo” socrático, envolvendo a pretensão de uma verdade absoluta de suas conclusões, sua aversão ao mito e à arte (tidos como “ilusão” e “desconhecimento”) e, por conseguinte, o enfraquecimento dos instintos impulsivo-afirmadores da vida, Nietzsche não admite se render às “melhorias” da eleição do racional em detrimento do trágico, e dispara:

“Se se tem necessidade de fazer da razão um tirano, como Sócrates o fez, então o risco de que outra coisa faça-se tirano não deve ser irrisório. A racionalidade foi outrora desvendada como Salvadora; nem Sócrates, nem seus “doentes” estavam livres para serem racionais. Ser racional foi de rigueur, foi o seu último remédio. O fanatismo, com o qual toda reflexão grega se lança para a racionalidade, trai uma situação desesperadora. Estava-se em risco, só se tinha uma escolha: ou perecer, ou ser absurdamente racional... O moralismo dos filósofos gregos desde Platão está condicionado patologicamente; do mesmo modo que sua avaliação da dialética.” (5)

Com efeito, Nietzsche teve um profundo sentimento de que, com a aniquilação dos instintos pela razão a qualquer custo, a humanidade se equivocou e que, com o passar dos tempos, tomou, cada vez mais intensamente, o caminho inverso de um desenrolar-se natural e salutar. Quer dizer: cabe ao gênio humano regenerar toda a herança socrática que, segundo Nietzsche, é uma espécie de produto híbrido de uma civilização corrompida. Em outras palavras, trata-se de recuperar, de tornar a gerar uma vida mais entusiasticamente artística, mais naturalmente trágica. Vejamos o que diz o próprio filósofo:

“A Sócrates, porém, parecia que a arte trágica nunca “diz a verdade”: sem considerar o fato de que se dirigia àquele que “não tem muito entendimento”, portanto não aos filósofos: daí um duplo motivo para manter-se afastado. Como Platão, ele a incluía nas artes aduladoras, que não representam o útil, mas apenas o agradável, e por isso exigia de seus discípulos a abstinência e o rigoroso afastamento de tais atrações, tão pouco filosóficas; e o fez com tanto êxito que o jovem poeta trágico chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus poemas a fim de poder tornar-se discípulo de Sócrates.” (6)

Ou seja, é preciso tornar a fundir mito e música e recuperar a tonalidade solar da vida que foi esmaecida por “aquele” produto artificial e híbrido (o socratismo e suas convenções). Para tanto, é necessário trazer à tona um “novo teatro”. Igualmente imprescindível é absorver, no seu âmago mais profundo, toda uma capacidade de conversão: uma vez herdada a dor, é por meio dela e através dela que deverá advir o resgate de todo poder de transmutação. Trata-se, é verdade, de assimilar o passado, mas não se pode deixar de lhe acrescentar uma coragem nova e inovadora, de traduzir os seus rudes nãos em alegres sins,
“reconhecer nesse Irracional, nas dores da criação e no imoralismo mesmo da vida, as únicas condições que permitirão à humanidade realizar valores novos, superiores a todos aqueles que o otimismo racionalista tinha podido até então conceber, - neste sentido, se orientou, desde o início, o pensamento de Nietzsche.” (7)

É sob essa atmosfera que o autor de O nascimento da tragédia irá enxergar a urgência do ditirambo trágico, da embriaguez dionisíaca. Daí seu ato de rebeldia contra o marasmo doentio legado pelo socratismo. Daí sua sede por uma filosofia e um filósofo novos, superadores desse “testamento”, vitoriosos desse “pessimismo” e portadores de valores novos, “em quem se encarnasse o mito da humanidade de amanhã.” (8)

É convidativo trazer mais uma vez o filósofo à baila para desferir, a sangue frio, golpes contra a “emboscada” socrática:

“Mas Sócrates desvendou ainda mais. Ele olhou por detrás de seus atenienses nobres; ele compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era nenhuma exceção. O mesmo tipo de degenerescência já se preparava em silêncio por toda parte. A velha Atenas caminhava para o fim. - E Sócrates entendeu que todo o mundo tinha necessidade dele: de sua mediação, de sua cura, de seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos estavam em anarquia; por toda parte estava-se cinco passos além do excesso; o “monstrum in animo” era o perigo universal. “Os impulsos querem fazer-se tiranos; precisa-se descobrir um antitirano, que seja mais forte”... Quando aquele fisionomista revelou a Sócrates quem ele era, uma caverna para todos os piores desejos, o grande irônico ainda deixou escapar uma palavra, que deu a chave para compreendê-lo. “Isto é verdade, disse ele, mas me tornei senhor sobre todos estes desejos”. Como Sócrates se assenhorou de si mesmo? - No fundo o seu caso foi apenas o caso extremo - apenas o caso mais distintivo disto que outrora começou a se tornar indigência universal: o fato de ninguém mais se assenhorar de si, de os instintos se arremeterem uns contra os outros. Ele fascinou como este caso extremo - sua feiúra apavorante o comunicava a todos os olhares...” (9)

Como podemos ver, ao contrário de um “positivismo racionalista”, a filosofia nietzschiana recusa qualquer rendição ao cansaço promovido pelo intelectualismo, ama as aventuras e as dificuldades de uma vida perigosa, além de enojar-se diante de qualquer tipo excessivo de objetividade. Nesse sentido, não é a embriaguez dionisíaca seu ímpeto axial?, reconciliação entre homem e natureza, corpo e alma, físico e metafísico, bem e mal? Além do mais, o anseio de criar padrões, “de preparar cérebros ou de moralizar consciências, a grande ilusão da moral socrática consistiu nessa maiêutica que não quer partejar senão cérebros” (10) - “Ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua - ironia?” (11).

Dessa forma, Nietzsche vê no dínamo dionisíaco o martelo (12) espatifador de toda e qualquer onipotência do conhecimento científico, algo revitalizador no tocante a todas as categorias lógicas ligadas à “essência”, à “identidade”. Afinal, “o essencial em nossa existência permanece envolto num mistério impenetrável a qualquer explicação racional”. (13)

Isso posto, não nos parece precipitado destacar que a arte dionisíaca soa para Nietzsche como uma implacável fonte de alegria e inspiração permanentes, capaz de tudo embaralhar, de celebrar o acaso e a multiplicidade. Sua aposta se faz valer exatamente aí, na exuberância do mito trágico, no acolhimento do estranho, do desconhecido, na alegria da saúde integral, na dor transmutada em riso, na doença espiritual convertida em excesso de vitalidade.

Assim, nada melhor do que o filósofo, por si mesmo, autodenominar-se discípulo de Dionísio e, em especial, apontar a vertente dionisíaca com o qual se identifica, pela qual sente maior atração:
“O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia? (14)
“O que é dionisíaco?” (15) Sim, o que é dionisíaco? - Neste livro há uma resposta a essa pergunta - um “sabedor” fala aqui, o iniciado e discípulo de seu deus. (...) Uma questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade - esta relação permaneceu igual ou se inverteu? -, aquela questão de se realmente o seu cada vez mais forte anseio de beleza, de festas, de divertimentos, de novos cultos brotou da carência, da privação, da melancolia, da dor.” (16)

Isto é: leitor arguto dos antigos helenos, sobretudo dos poetas da época arcaica, Nietzsche acreditava, tal como o disse Heráclito, que “o sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente.” (17)

*Professor Assistente do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


NOTAS
1. Cf. GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche. SP: Publifolha, 2000. pp. 31-32.
2. Idem, p. 33.
3. Cf. NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como filosofar com o martelo; § 3, p. 19. Trad. Marco Antonio Casa Nova. RJ: Relume Dumará, 2000. Doravante, quando nos referirmos a esta obra, utilizaremos a abreviatura CI.
4. GIACOIA JR., Oswaldo. op. cit. p. 35.
5. Cf. CI, § 10, p. 22.
6. Cf. NIETZSCHE, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; § 14, pp. 87-88.Trad., notas e posfácio J. Guinsburg. SP: Cia. das Letras, 1992. Doravante, quando nos referirmos a esta obra, utilizaremos a abreviatura NT.
7. Cf. SPENLÉ, Jean-Edouard. O pensamento alemão. Trad. João Cunha Andrade. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1945. p. 148.
8. Idem, p. 149.
9. Cf. CI, § 9, pp. 21-22.
10. SPENLÉ, Jean-Edouard. op. cit., p. 162.
11. Cf. NT, § 1, p. 14.
12. Vale sublinhar aqui o título completo de CI: Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como filosofar com o martelo (grifo nosso).
13. GIACOIA JR., op. cit., p. 36.
14. Cf. NT, § 1, p. 14.
15. Idem, § 3, p. 16.
16. Ibidem, § 4, pág. 17.
17. Cf. vol. Os pré-socráticos (Coleção “Os Pensadores”). SP: Nova Cultural, 1996. p. 88 (Aristóteles, Meteorologia, II, 2. 355 a 13).

Fonte: MORPHEUS - Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Conhecimento e Sociedade. Publicação on-line semestral - ISSN 1676-2924.